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O STF e a constitucionalização da fraude trabalhista

O resultado dessa verdadeira ruptura em relação à sistemática processual e à própria estrutura do Poder Judiciário no Brasil é a suspensão de um número indeterminado de processos trabalhistas

A intervenção do STF (Supremo Tribunal Federal) em matéria trabalhista parece ter alcançado o limite do absurdo com o reconhecimento da repercussão geral no Tema nº 1.389, no qual a Suprema Corte avocou a palavra final sobre a “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”.

Não faltou quem aplaudisse a medida, principalmente com base em argumentos parcialmente consequencialistas, afinal escolhem ressaltar possíveis impactos da atuação do STF que avaliam como positivos, enquanto ignoram o lado negativo. Ignoram, sobretudo, aquelas coisas antiquadas e velhas, como a lei e a Constituição, fontes normativas trabalhistas inadequadas ao século 21, um tempo no qual, segundo se diz, qualquer coisa é qualquer coisa, basta mudar o nome.

O resultado dessa verdadeira ruptura em relação à sistemática processual e à própria estrutura do Poder Judiciário no Brasil é a suspensão de um número indeterminado de processos trabalhistas, provavelmente centenas de milhares, e o risco de que o direito do trabalho e a Justiça do Trabalho sejam extintos pelo STF.

Problema que o STF criou para si mesmo

O ministro Gilmar Mendes afirmou, em julgamento de reclamação, o seguinte: “[…] a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria”.

Tratava-se de um caso de pejotização [1], no qual a Justiça do Trabalho havia declarado a existência de vínculo trabalhista entre as partes, em virtude do preenchimento dos requisitos para tanto. Por sua vez, em contexto semelhante, o ministro Alexandre de Moraes pontuou o seguinte [2]: “aquele que aceitou a terceirização e assinou o contrato, quando é rescindido o contrato e entra com a reclamação, ele deveria também recolher todos os tributos como pessoa física”.

Há duas premissas subjacentes nas falas: a de que o pejotizado/empregado tem plena autonomia para escolher ser pejotizado ou não e que a pejotização é espécie do fenômeno mais amplo da terceirização. Os argumentos são basicamente a ratio decidendi do que STF vem utilizando para justificar a cassação de inúmeras decisões da Justiça do Trabalho e dilapidar, pouco a pouco, o direito do trabalho no Brasil. Tais teses ganharam corações e mentes dos demais ministros, uns a contragosto, é verdade, mas o incômodo não foi grande o suficiente para uma mudança de rumos.

Para o STF, a ficção deve prevalecer sobre o fato: ficção de que o trabalhador pejotizado e o empregador negociam em pé de igualdade e ficção de que a pejotização é espécie do gênero terceirização. Na realidade, pejotização e terceirização são fenômenos distintos e não há autonomia da vontade plena quando a escolha de uma das partes é a pejotização ou o desemprego. Todavia, para atualizar a legislação trabalhista ao século 21, precisamos entender que qualquer coisa é qualquer coisa.

Ao contrário do que o STF tenta fazer parecer, a Justiça do Trabalho sempre analisou caso a caso, a partir das provas e fatos apresentados em cada processo, a existência ou não de relação de emprego. Não era toda contratação “não empregatícia” que era “invalidada” pela Justiça do Trabalho. Assim, ao contrário do que afirmaram alguns articulistas, nunca houve presunção absoluta de vínculo empregatício na Justiça do Trabalho. Nunca houve.

A questão sempre girou em torno da verificação sobre a correspondência dos fatos à forma. Pecando por apresentar um exemplo que beira a obviedade, um trabalhador contratado como autônomo somente seria considerado autônomo pela Justiça do Trabalho se fosse realmente autônomo. A Justiça do Trabalho sempre ousou entender que um trabalhador contratado como “autônomo” que, no mundo real, laborava de forma subordinada era, na realidade, um empregado. Essa “ousadia” de cumprir o artigo 9º da CLT e até mesmo o artigo 167 do Código Civil (que prevê a nulidade do negócio jurídico simulado) agora parece ter magicamente se tornado incompatível com a Constituição.

Aqueles que defendem as manobras do STF tentam fazer parecer que o problema, para eles, são eventuais decisões contrárias à instrução processual, que estariam reconhecendo vínculo empregatício onde não há. Todavia, o que desejam verdadeiramente é a generalização do autônomo/pejotizado no papel, mas empregado subordinado de fato.

O que os arautos da presunção de legalidade da pejotização e o patronato imediatista desejam (e sempre desejaram), no fundo de seus corações, é a constitucionalização da fraude trabalhista. O que se esconde, portanto, atrás do lema, às vezes repetido ad nauseam, de que a “CLT precisa ser atualizada para o século 21” é a ânsia mal disfarçada por “atualizar” a principal fonte do direito do trabalho no Brasil ao século 19, quando o direito do trabalho não existia. Fala-se do futuro olhando para o retrovisor.

Contextualizada a questão, vejamos o que dispõe a decisão que afetou o ARE 1.532.603 à sistemática da repercussão geral (Tema nº 1.389):

Como já destaquei na manifestação sobre a existência de repercussão geral, parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva. Esse fato se deve, em grande parte, à reiterada recusa da Justiça trabalhista em aplicar a orientação desta Suprema Corte sobre o tema. Conforme evidenciado, o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas. Essa situação não apenas sobrecarrega o Tribunal, mas também perpetua a incerteza entre as partes envolvidas, afetando diretamente a estabilidade do ordenamento jurídico.

Um primeiro ponto precisa ser destacado: a afetação dos processos de pejotização a um tema de repercussão geral diverso das premissas fáticas da ADPF 324 e do Tema 725 de repercussão geral confirma de maneira cabal e eloquente o que muitos afirmam e afirmaram há anos: o STF cassa decisões da Justiça do Trabalho com base em precedentes que sequer se enquadravam aos casos objeto das reclamações.

Spacca
Quem foi a fonte de insegurança jurídica, então? A Justiça do Trabalho que estava aplicando há décadas a literalidade de uma das poucas disposições da CLT que não foram substancialmente alteradas ao longo dos anos (seu artigo 9º) ou o STF, que começou a distorcer seus próprios precedentes ao ponto de qualquer tese empresarial passar a ser acolhida pela via reclamatória?

Quando ministros do STF se queixam da quantidade de reclamações que a Corte tem recebido, parecem ignorar o fato de que a explosão de reclamações aconteceu sobretudo após a RCL 59.795, na qual o reconhecimento da constitucionalidade da terceirização e a Lei nº 11.442 de 2007 foram usadas para cassar decisão da Justiça do Trabalho sobre um caso que não era nem de terceirização nem de trabalhador do transporte rodoviário de cargas (de que trata a Lei nº 11.442 de 2007).

Antes dessa decisão monocrática, havia esse problema de proliferação de reclamações? Ou ele passou a acontecer na medida em que o STF forneceu ao patronato uma forma rápida, direta e de fácil acesso, a depender do poderio econômico, para neutralizar o sistema jurídico trabalhista brasileiro de garantias de boa parte dos direitos constitucionais sociais?

Destaca-se ainda que, assim como no Tema nº 1118, o Tema nº 1.369 afetou a sistemática de repercussão geral matéria eminentemente infraconstitucional: a atribuição do ônus da prova quando da alegação de fraude trabalhista. Por que o STF, novamente, vai tratar de ônus da prova no processo do trabalho, uma vez que essa matéria não é tratada direta ou indiretamente pela Constituição?

A relação entre a Justiça do Trabalho e o STF está sim desgastada, mas não por culpa da Justiça Laboral, que só tem tentado cumprir a sua legítima missão constitucional, apesar da Suprema Corte ter se colocado indevidamente na posição de “instância revisora das decisões trabalhistas”. Esse papel foi dado ao STF por ele mesmo, por meio de decisões monocráticas, erráticas e casuísticas.

A expansão progressiva da atuação do STF em todas as esferas da vida pública e privada é um fato notório. O vigor adotado para tentar preservar a democracia é o mesmo utilizado para tentar impor, contra tudo e contra todos, que as relações de trabalho brasileiras sejam regidas pelo “superprincípio” da livre iniciativa (em sua versão do século 19).

De que modo a livre iniciativa assegura a liberdade dos agentes econômicos de optarem por cumprir ou não legislações de ordem pública? Em que momento a fraude concomitantemente trabalhista, previdenciária e fiscal passou a ser uma forma válida de “organização produtiva”?

‘Sistema de Precedentes’ contra o direito
Lênio Streck [3] há muito denuncia que o STF e os tribunais superiores, sob o pretexto de se tornarem “Cortes de Precedentes” vêm criando teses que extrapolam o caso concreto e se tornam verdadeiras “super leis”, uma vez que as leis criadas pelo Legislativo ao menos são passíveis de serem interpretadas, enquanto as teses judiciais de cúpula inovam o ordenamento jurídico e, simultaneamente, são vinculantes para os órgãos judiciários inferiores.

A partir disso, o STF, sem base constitucional ou legal, vem se “autoconcedendo” competência para tratar de matérias trabalhistas infraconstitucionais (ônus da prova, por exemplo). O objetivo aparente é atropelar legislação, doutrina e jurisprudência trabalhistas como se o direito do trabalho brasileiro houvesse surgido ab nihilo mais ou menos nos últimos oito anos, para atrapalhar a vida do empresário, no lugar de ser uma construção social, teórica, legislativa e jurisprudencial de décadas que tem como intuito principal garantir a própria existência civilizada do sistema capitalista.

A estratégia vem sendo construir um precedente que extrapola o caso sob julgamento e, sucessivamente, aplicar esse precedente, já extrapolado na origem, por analogia, para outros casos similares (ou não). O resultado é parecido com a brincadeira do telefone sem fio: o entendimento final não tem mais nenhuma relação lógica com o entendimento inicial. E, assim, sem base jurídica, o STF está tentando retirar a competência da Justiça do Trabalho para analisar vínculos empregatícios controvertidos, tornando a CLT e boa parte do artigo 7° da Constituição meras sugestões.

Sempre que se mostra conveniente, porém, o STF utiliza a Análise Econômica do Direito (AED) para avaliar os impactos de suas decisões. No tema de Repercussão Geral nº 725, que tratou sobre terceirização, a teoria econômica foi amplamente explorada. Diante dessa nova tendência, fica o convite para a Suprema Corte avaliar qual será o impacto econômico de uma república de “pejotizados” e “autônomos”. Ou alguém ainda tem a ingênua ilusão de que algum trabalhador, por mais subordinado que seja, está a salvo da “livre iniciativa” de virar um “terceirizado” de si mesmo?

Qual o impacto do fim das férias de trinta dias para o setor de turismo? Qual o impacto do fim do décimo terceiro salário para o setor comercial no final do ano? Qual o impacto decorrente da redução drástica dos empregos formalizados para a arrecadação do FGTS e suas políticas sociais? Qual o impacto econômico dos acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores sem qualquer proteção social? Quais serão as consequências da constitucionalização da fraude trabalhista para a seguridade social brasileira? E para o mercado imobiliário, uma vez que o FGTS é largamente utilizado pelos trabalhadores para o acesso à moradia?

Certamente o STF não deixará de cumprir o artigo 20 da Lindb e responder a esses e outros questionamentos consequencialistas, quando do julgamento do Tema 1.389.

Assembleia desconstituinte composta por 11 pessoas: o que podemos concluir por enquanto?
Tornar a relação de emprego facultativa e subtrair a competência da Justiça do Trabalho para analisar pleitos laborais envolvendo relações de emprego controvertidas é o mesmo que revogar ou sensivelmente esvaziar de significado os artigos 7º a 11 e 114 da Constituição. Há dúvidas sobre se o próprio Legislativo, no exercício do poder constituinte Derivado, poderia fazer isso.

Quando o órgão de cúpula do Poder Judiciário resolve tomar para si o poder de desfazer o que o constituinte originário fez, não há como concluir de forma diversa de que o país está diante de uma séria desarmonia institucional. Há um desequilíbrio quando teses judiciais e precedentes valem sempre mais do que leis, bem como quando a Suprema Corte se sente legitimada a reescrever e esvaziar a parte trabalhista da Constituição, agindo como verdadeira assembleia desconstituinte. É urgente que o pacto da separação de poderes seja revisto e democraticamente reequilibrado.

Se existe, por parte da Suprema Corte, a suposição de que a ruptura pura e simples com a ordem constitucional trabalhista gerará o fim da insegurança jurídica causada pelo próprio STF, o resultado provável é, por outro lado, que uma eventual decisão que subtraia a competência da Justiça do Trabalho para apreciar vínculos trabalhistas controvertidos e que “constitucionalize” a fraude trabalhista ensejará inúmeros efeitos desestabilizadores na ordem social, política, administrativa e econômica brasileira.

Para evitar isso, os ministros do STF precisam recordar o que estabelece o artigo 93, IX da Constituição. Ao lê-lo, devem lembrar que, por serem membros que não foram democraticamente eleitos, a autoridade de suas decisões deve derivar de fundamentação técnica e, sobretudo, constitucionalmente adequada, não havendo espaço para que a sociedade e o restante do Judiciário sejam verticalizados por meio de precedentes construídos com distorção e violação à lei e à própria Carta da República.

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